quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Água de Vidago e Álvaro de Campos (1929)

DILUENTE

A vizinha do número quatorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida.

Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um peão de cair.
Posso morrer como o orvalho seca.
Por uma arte natural de natureza solar,
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração...
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas...
Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana?
Apoteose ás avessas...
Dêem-me Água de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!


Álvaro de Campos*
29-08-192

*Álvaro de Campos é um dos heterónimos mais conhecidos do poeta português Fernando Pessoa.


Bonito poema de Álvaro de Campos, e a mim "dêem-me Água de Vidago" para continuar a andar por aqui...

Um abraço e até breve...





























2 comentários:

Carlos Caria disse...

Caro Júlio, bebe muita agua de Vidago, enquanto o IVA está na taxa reduzida, depois mata saudades, e bebe também.
Abraço
Carlos Caria

Paulo Coimbra disse...

Desconhecia em absoluto esta referência de Fernando Pessoa às àguas de Vidago.
Só lhe conhecia a sua apetência por bebidas mais espirituosas...
Paulo Coimbra, http://enifpegasus.blogspot.com/